Será que o Estuário do Tejo tem espaço para as aves e para o novo aeroporto?

No início de Novembro, a Wilder foi até ao Estuário do Tejo para perceber de que forma os milhares de aves poderão ser afectados pela nova obra. Na margem do rio, com bandos de aves a rasar as águas, falámos com José Alves, investigador da Universidade de Aveiro que há 15 anos estuda as aves migradoras do estuário do Tejo.

WILDER: Como é que o novo aeroporto na península do Montijo vai afectar as aves do Estuário do Tejo?

José Alves: As rotas de aproximação e descolagem das aeronaves vão sobrepor-se a zonas de alimentação e de refúgio das aves. Estas serão perturbadas no período da maré alta quando estão a descansar e no período da maré baixa quando se estão a alimentar. As rotas das aeronaves vão afectar as aves da zona intertidal a Noroeste, onde fica o grande refúgio das salinas do Samouco – um dos mais importantes do Estuário do Tejo –, e as aves da zona zona intertidal a Sudeste, no canal de Sarilhos Grandes, que também é Zona de Protecção Especial para aves. Além disso, as linhas de voo vão passar também nos arrozais da Lezíria Sul, que é uma zona muito importante para a avifauna no Estuário e onde há bandos muito, muito grandes, que podem chegar a ter 50.000 indivíduos de várias espécies, desde o maçarico-de-bico-direito, à íbis-preta e ao colhereiro. A influência dos aviões vai repercutir-se em todas estas aves e também em várias espécies de patos e de gansos.

W: Há alguma zona do Estuário do Tejo onde as aves se possam refugiar? Podem afastar-se e ir para sítios alternativos aos que costumam usar?

José Alves: Não, a resposta é não. A percepção geral é que as aves se podem deslocar porque podem voar. Mas nos nossos trabalhos – de seguimento das aves com anilhas de cor ou aparelhos GPS – o que vemos é que as aves são muito fiéis aos locais de alimentação e de repouso. As aves não descobrem outros sítios do dia para a noite. Este comportamento de serem muito, muito fiéis dificulta estas adaptações ou respostas.

José Alves nas Salinas do Samouco

W: Para as aves, o Estuário do Tejo não é todo igual.

José Alves: Exacto. O Tejo tem zonas muito particulares para as aves. Elas usam repetidamente durante vários anos os mesmos locais de forma regular. Uma ave que está em Corroios pode nem sequer saber que existem os arrozais na zona da Lezíria. E vice-versa. Temos registado esta utilização do espaço e publicámos vários trabalhos que mostram que a fidelidade aos sítios é muito, muito alta, na ordem dos 90%. Portanto, as aves que estão cá durante todo o Inverno usam, na maior parte desse período, o mesmo sítio.

W: Então e as aves poderão ir para outro estuário, que não o do Tejo?

José Alves: Não costuma acontecer. No seguimento que temos feito, e para algumas espécies temos 25 anos de dados, o que sabemos é que as aves utilizam muito poucos sítios na sua rota migratória. Um destes exemplos é o maçarico-de-bico-direito, que se reproduz na Islândia e passa o Inverno em Portugal. No seguimento de aves com 20 ou 25 anos, sabemos que as aves usam três a quatro sítios ao longo desta vasta área de distribuição. Os locais que elas usam são muito específicos e os indivíduos não têm grande facilidade em mudar de local. Têm de os conhecer, de saber onde estão. Estes processos de alteração de locais são feitos, sobretudo, pelos juvenis. Em cada ano, os juvenis podem estabelecer-se em sítios diferentes. É o que chamamos alterações de distribuição em termos transgeracionais: é através das gerações e não dos próprios indivíduos. Os indivíduos que já estão estabelecidos não mudam de local.

W: As aves usam o estuário do Tejo como zona de alimentação, de refúgio. Mas há espécies que usam este estuário para se reproduzir.

José Alves: Sim, temos espécies residentes. Uma delas é o pernilongo. Alguns indivíduos desta espécie só estão cá no Inverno e depois vão-se reproduzir a outros locais, mas outros escolhem reproduzir-se aqui. Outro exemplo é o borrelho-de-coleira-interrompida. O Estuário do Tejo funciona de variadíssimas formas para diferentes aves. Funciona como zona de reprodução, zona de invernada e zona de stop-over, ou seja, de paragem migratória. Depois, dentro da mesma espécie há populações diferentes. Por exemplo, o maçarico-de-bico-direito tem uma população que passa cá todo o Inverno. Quando chega a Primavera, há aves que se vão reproduzir à Islândia e outras à Europa Central, sobretudo Holanda e Alemanha. Depois há maçaricos que passam o Inverno em África (no Senegal, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Gâmbia) e que regressam ao Estuário do Tejo no seu voo para Norte, para as suas zonas de reprodução. Estes fazem grandes concentrações, chegando a 40.000 ou 50.000 aves, sobretudo nos arrozais da Lezíria.

W: E que desafios terá o novo aeroporto para as aves que se reproduzem aqui?

José Alves: Penso que os efeitos nessas aves podem ser muito mais directos, especialmente no seu sucesso reprodutor. Isto porque estas aves têm que estar no seu ninho para incubar os ovos. Ora, cada vez que são perturbadas e saem do ninho, a temperatura de incubação dos ovos desce. Se estas perturbações forem muito contínuas, no limite, as aves deixam de poder incubar os ovos. Há ainda outros efeitos, nomeadamente na facilidade com que os predadores naturais – como os corvos – descobrem os ninhos. Cada vez que as aves abandonam os seus ninhos, revelam aos predadores – que estão atentos a isso mesmo – onde está localizado o ninho.

W: E para as aves migradoras?

José Alves: Para estas, os efeitos já não são tão claros. O que as aves querem é alimento para manterem a energia suficiente, sobretudo, para poderem migrar. Se estas áreas de alimentação são perturbadas de forma muito continuada, estas aves deixam de poder passar o tempo que têm entre as marés a alimentar-se. Além do que acabam por gastar mais energia por serem obrigadas a deslocar-se pela perturbação que sentem. Se estas aves não têm acesso ao alimento que tinham anteriormente, isso pode ter impacto nas suas migrações, podendo não chegar às suas zonas de reprodução. E há aves que dependem muito deste estuário, como o alfaiate, símbolo da Reserva Natural do Estuário do Tejo. Esta espécie inverna aqui. Costuma chegar no final do Verão e fica até Março. O alfaiate tem uma particularidade: quanto mais frio está no Norte da Europa, mais aves temos cá. O estuário do Tejo funciona não só como zona de invernada por excelência, mas também como zona de segurança. Quando os Invernos são muito rigorosos na Europa – sobretudo em França, Bélgica e Holanda – estas aves deslocam-se mais para o Sul. O estuário do Tejo é uma rede de segurança para estas aves.

W: Do ponto de vida da vida selvagem, o estuário está fragmentado, com pressão humana. Há espaço para as aves?

José Alves: O estuário está fortemente impactado pelas actividades humanas. Está na envolvente da maior malha urbana do país, a Grande Lisboa. Sofre perturbações em muitas zonas. As áreas que são usadas pelas aves têm cada vez mais pessoas. As aves são cada vez mais empurradas para zonas menos perturbadas, mas é óbvio que uma zona mais pequena não consegue suportar tantas aves. Naturalmente, as pessoas gostam de fazer actividades ao ar livre, e ainda bem. Mas há actividades que têm aumentado de forma muito acentuada nos últimos anos e que têm estado a utilizar o estuário de uma maneira diferente, como a apanha de bivalves pelos mariscadores. Há muita gente que faz a apanha do marisco usando barcos e indo para bancos muito afastados. E depois o estuário tem ainda impactos em termos de luz e de ruído que vem das cidades.

W: Então será que o Estuário do Tejo tem espaço suficiente para as aves que tem agora e para um novo aeroporto, mais uma obra, depois de outras como o Freeport de Alcochete e da Ponte Vasco da Gama, por exemplo?

José Alves:  De facto é uma grande pressão que é adicionada às restantes pressões que existem no estuário para estas aves. O que se pode esperar é que haja cada vez menos espaço, menos acesso destas aves ao seu alimento e às suas zonas de descanso. 


Saiba mais.

Conheça aqui a proposta de Declaração de Impacte Ambiental emitida a 30 de Outubro passado pela Agência Portuguesa do Ambiente.

Descubra aqui as espécies selvagens mais afectadas pelo novo aeroporto, segundo o Estudo de Impacte Ambiental.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.